06 julho 2006

Um caso de (des)humanidade: Casal de deficientes vive em pânico à espera da chuva




Fernando Reis Marques é tetraplégico e vive, com a mulher, também ela com uma «incapacidade permanente parcial de 66%».
Ambos sofreram acidentes que provocaram as deficiências. Ele um acidente de trabalho que, em 1999, lhe lesou a coluna, ela um acidente de viação que a levou a um quadro clínico caracterizado por problemas ósseos e musculares, por um lado e mentais, por outro.
Em 2003, ano a que remonta as queixas, este após vários momentos em que esteve internado no Centro de Medicina de Reabilitação do Alcoitão, viu-se obrigado a fazer obras em casa, de acordo com projecto apresentado por este centro. Foi também num destes momentos que um seu vizinho, aproveitando a sua ausência e as incapacidades psíquicas da mulher, resolveu fazer obras. A casa encontra-se num terreno em declive, logo à entrada da Gondemaria e o vizinho aterrou parte da sua propriedade, vindo mesmo a ocupar uma serventia de Fernando Marques e destruindo uma fonte que ali existia e que o queixoso afirma ter sido pública. Sobre o aterro foi construído um muro sendo que a casa de Fernando Marques acabou ficando numa cota inferior, suportando as terras e o respectivo muro. Por baixo foi feito o aterro das condutas de uma linha de água que ali passava (alimentando o tal fontanário que refere como tendo sido publico) com colocação de manilhas. A casa de Fernando Marques não suportou o peso e abriu grandes rachas. Agora, sempre que chove, o casal deficiente vê a sua casa inundada e é obrigado a recorrer aos bombeiros para que os retirem do lar e aos vizinhos para que estes os acolham.
É com lágrimas nos olhos de ambos que nos contam que isso mesmo sucedeu aquando da última enxurrada, há cerca de três semanas. «Só queria morrer», recorda Fernando. «A água, no quarto do casal, chegava-nos até aqui», afirma uma vizinha que os socorreu apontando o meio da perna.
Com 54 anos, Fernando Marques vive naquela casa há 34 e diz que nunca, antes da construção do muro, tinha tido qualquer problema com infiltrações. Hoje, para além das fendas nas paredes, são visíveis, um pouco por toda a casa os tacos do soalho levantados, apodrecidos.
Mas não se pense que Fernando Marques não se tem esforçado para resolver a situação. Apesar da sua deficiência tem procurado ajuda por todo o lado e sem conseguir resposta, em particular da Câmara que acusa de ter licenciado o muro, apesar de depois acabar por remeter o assunto para posterior decisão.
Chega agora aos tribunais em busca de justiça, interpondo uma acção no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria contra a Câmara de Ourém, pedindo o indeferimento do licenciamento.
Fernando Marques diz que não quer saber da terra que o vizinho lhe ocupou. «Terra tenho eu a mais para aquilo que posso fazer», afirma.
Fernando Marques chega aos tribunais depois de ter tentado tudo o mais. Apresenta-nos documentos médicos comprovativos da sua doença e da da sua mulher, pareceres médicos, resultados de vistorias da Câmara e do Delegado de Saúde concelhio.
Veja-se, por exemplo, parte do que é referido no relatório de visita da delegação de saúde, efectuada em 2004 e que terá sido remetido à Câmara: «em 2002/2003, o vizinho construiu um muro encostado à sua habitação e aterrou com terra o respectivo muro até uma altura de mais de um metro, ficando assim a habitação do Sr. Fernando a uma cota inferior. Para desviar a linha de água que habitualmente passava por este local, o vizinho colocou manilhas.
Como o muro não se encontra totalmente rebocado, mas apenas a partir do que se encontra a descoberto, somos de parecer que a água se infiltra na parte do muro não rebocado causando infiltrações na habitação do Sr. Fernando.
Na parte mais antiga da habitação os quartos apresentam os tacos levantados e podres e as paredes possuem humidade e muitas fendas.
Na zona ampliada também já se encontram fendas e tinta descascada devido à humidade».
Exposta a situação, a delegação de saúde de Ourém emite o parecer de que «a solução do problema passa por desaterrar junto ao muro efectuado pelo vizinho até atingir a base da habitação do Sr. Fernando, rebocar convenientemente o resto do muro, impermeabilizá-lo e efectuar drenos para escorrência de água». Acrescenta ainda este relatório que «por prevenção, a zona superior do muro deveria possuir inclinação para que a água não se acumulasse, podendo infiltrar-se entre o muro e a habitação».
A esta, segue-se uma outra vistoria, pela mesma entidade e a pedido de Fernando Marques, em 2005. Mais uma vez o resultado é comunicado à Câmara e em resposta ao pedido de vistoria conjunta esta responde que o processo se encontrava arquivado «até resolução do processo judicial em curso». Por isso a delegação de saúde contacta um dos herdeiros da propriedade vizinha já que o vizinho responsável pela obra, entretanto falecera. Terá sido uma sua herdeira que terá respondido à delegação de saúde que «não efectuaria obras até resolução do processo judicial e que se o Sr. Fernando pretendesse efectuar por conta dele, autorizaria, mas com a presença de um funcionário da Câmara»
E este parece ser um imbróglio difícil de resolver. Naturalmente que a Câmara não vai enviar um funcionário para fiscalizar obras num equipamento que se encontra em processo judicial e que, ainda por cima, não está legalizado. A morosidade dos tribunais é o que se sabe e, enquanto isso, o casal Marques aguarda assustado a passagem do Verão, certo de que, com as primeiras chuvas, chegarão, outra vez, os seus problemas: a casa inundada e os bombeiros a retirá-los para os encaminhar para casa de algum vizinho que os acolha.

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