10 agosto 2006

Missionário de Paz em tempos de guerras



Padre Jesuíta, Manuel Ferreira passou a maior parte da sua vida como missionário, em Moçambique, e em ambiente de guerra. Excelente comunicador, conta-nos as suas vivências e diz ser um «homem feliz e muito realizado». Em Moçambique vai continuar «enquanto puder trabalhar e não der trabalho». Com uma forma peculiar de olhar o mundo que o rodeia diz que para o homem mais pacífico fazer uma guerra basta colocar-lhe «armas na mão e um pouco de ódio no coração».



O padre Manuel Ferreira é natural da Ribeira do Fárrio. Com 76 anos recorda para o NO uma vida passada, na maior parte do tempo, em clima de guerra. Mas não é um homem amargo, pelo contrário. De formação humanística, com especial amor pelas artes e literatura, aprendeu a ler os homens e os seus corações em África que considera a sua casa.
Na nossa longa conversa, o padre Manuel Ferreira começou por nos contar a forma como foi parar a Moçambique. Diz que estava a estudar filosofia em Milão quando foi desafiado por um colega a ir para o México. Era jovem e a ideia agradou-lhe, pelo que a apresentou aos seus superiores que não gostaram tanto e entenderam que, como as suas missões necessitavam de gente, ele deveria ir antes para uma delas. E foi para Moçambique.
«Não fui para o seminário diocesano porque os meus pais eram pobres. Fui para os Jesuítas porque era mais barato»
Mas a verdade é que quando optou pela Ordem Jesuíta não foi a pensar em ser missionário. «Eu queria ser Jesuíta porque queria ser padre e queria sê-lo de determinado modo», afirma. «Também podia ter sido Franciscano ou padre diocesano». Mas «não fui para o seminário diocesano porque os meus pais eram pobres. Fui para os Jesuítas porque era mais barato». E, passados cinco anos, «comecei a emigrar». Primeiro dentro do país foi parar ao norte, a Macieira de Cambra, quando tinha apenas 11 anos. Aí passou cinco, num seminário menor. Aos 17, «faz agora 50 anos, decidi seguir a vida Jesuíta. Fui para Soutelo, onde passei mais cinco anos e, ao fim desse tempo, mandaram-me estudar filosofia em Itália. Os meus superiores tinham-me destinado uma formação na área das Letras e previam uma passagem pela Universidade de Coimbra». Mas eis que «surge a tal vocação missionária, na altura de forma um pouco pueril a exprimir-se para a América Latinadevido ao tal amigo».
Em Moçambique
no início da
guerra colonial
Mas acaba por ir para Moçambique em 1964. «Tinha a guerra colonial começado dois meses antes». Mas esta desenvolvia-se no norte do país sendo pouco sentida no centro, para onde foi. ERntretanto volta a ir estudar para Roma e regressa a Moçambique em Fevereiro de 1974. «Quando cheguei a guerra estava no auge e o ambiente já não tinha nada a ver com o que tinha deixado». É que, naqueles oito anos, a guerra tinha-se estendido a todo o país e vivia-se «um ambiente muito mau, de muito ódio, de muita desconfiança».
Vigiado pela PIDE
E eis que surge a primeira história: «porque o evangelho, naquele domingo, se prestava a isso, eu disse na homília que nós homens, em todo o mundo, estávamos demasiado armados uns contra os outros e que precisávamos de desarmar o nosso coração. Bastou isso para que, no dia seguinte, me viesse o administrador avisar que a PIDE-DGS já tinha o meu nome e já sabia o que eu tinha dito na missa e que, daí para a frente, ficaria com a PIDE sempre a vigiar-me. Gerou-se logo uma grande confusão. Correu pela Beira que tinha chegado um padre que vinha com manias revolucionárias e que não era claro que defendesse Moçambique como território português».
«Eu não tinha dúvidas que
aquele povo tinha direito à sua autodeterminação»
E hoje, o padre Manuel Ferreira confessa que até havia verdade no boato. É que «de facto, eu não era por Moçambique continuar a ser Portugal. Sempre considerei a necessidade da independência. A forma como isso aconteceu é que já é discutível. Mas eu não tinha dúvidas que aquele povo tinha direito à sua autodeterminação».
Por isso, é natural que sentisse desconfiança à sua volta. «A Beira era, e ainda é, a cidade de Moçambique mais progressista. Havia aí três tipos de pessoas. Os negros que contavam pouco porque se manifestavam pouco; os brancos favoráveis à guerra e à luta pela manutenção da situação colonial e os brancos favoráveis à independência. Isto gerava muita desconfiança. Mais do que dos negros, entre os próprios brancos.
Padre,
mestre noviciado e professor
Manuel Ferreira acabara de se formar em Teologia e deveria ir ensinar teologia no seminário maior no então Lourenço Marques, hoje Maputo. Ia formar padres negros mas, ao contrário do previsto, foi enviado para São Benedito de Manga, onde estavam os padres brancos que haviam sido expulsos pelo governo português por defenderem a autodeterminação. Aí, os Jesuítas fundam o noviciado. Manuel Ferreira tinha agora 35 anos e ao mesmo tempo que era mestre noviço ensinava francês e português a crianças das 5ª e 6ª classes. Em 1978 regressa à Beira e fixa-se em Matacuane onde ainda hoje está e desenvolve o seu trabalho, mantendo sempre forte ligação com os jovens, quer como professor, quer através da pastoral da Juventude. Ao mesmo tempo convive de perto com a sociedade cultural moçambicana, sobretudo com escritores.
Diz que durante as fases mais conturbadas da vida e das guerras naquele país, nunca sentiu qualquer tipo de represálias por parte dos naturais.
Com o povo na celebração da independência
Conta como viveu o dia da proclamação da independência:
«Na noite de 24 para 25 de Junho, quando foi proclamada a independência, eu estava sozinho com um irmão Jesuíta, em casa, sem sabermos se ali devíamos permanecer ou ir ao campo de futebol do Ferroviário da Manga, para onde o povo estava convidado a fim de assistir à proclamação. Sabíamos que se fôssemos corríamos riscos. Mas arriscamos. E quando chegamos, não éramos os únicos. Via-se um branco aqui e ali no meio da multidão negra, mas que não temiam aquele povo porque o conheciam e ele também nos conhecia. O estádio estava à cunha e na hora em que baixou a bandeira portuguesa e subiu a Moçambicana, foi uma loucura. Nessa altura tememos alguma reacção surgida de más memórias do colonialismo. Havia ali gente que tinha sofrido muito e podia vingar-se. Mas não. Naquela hora, as pessoas choravam e abraçavam-nos como seus amigos, como seus aliados».
Mas nessa altura ninguém acreditava que uma outra guerra iria começar, segundo o padre Manuel, muito mais violenta e fratricida. «Mas começou e durou quase 16 anos». Uma guerra de guerrilha que «começou pequena mas alastrou e os anos 80, foram anos terríveis de massacres e sofrimento».
«Desde o princípio sou bastante Frelimista»
Manuel Ferreira confirma que «desde o princípio sou bastante Frelimista, apesar de ter sofrido porque eles tinham um regime comunista muito forte». Mas na verdade, afirma, «foram muito menos cruéis que a Renamo. A Renamo matava, torturava, tirava as crianças do colo da mãe e pilava-as, mutilava as pessoas: cortavam os seios às senhoras, cortavam os lábios às pessoas e diziam-lhes "agora ri-te…". O bicho humano é assim. Progride em tudo e também na crueldade. Inventavam sempre maneiras novas de fazer sofrer. Quando desconfiavam que em determinada zona a Frelimo não fazia mal, entendiam que era porque o povo era pela Frelimo e chacinavam-no». Por isso o padre Manuel diz que passou, nesta altura, os piores anos da sua vida. «Nós não tínhamos nada. Passei fome. Mas passávamos todos. Não havia ricos nem pobres. A cidade da Beira é a cidade da Renamo e esta, para além de estar fortemente armada, fazia muitas sabotagens. Vivíamos constantemente à luz da vela e os alimentos não se conservavam por falta de energia para os frigoríficos».
Mas nem mesmo nesta época Manuel Ferreira sentiu correr perigo de vida. Diz que isso tem a ver com o temperamento, com a maneira de ser. Outros no seu lugar talvez considerassem ter corrido perigo mas ele afirma nunca o ter sentido. Ri-se ao recordar o único momento em que sentiu algum desrespeito. Viajava de comboio para um retiro com os seus noviços e «num local que era considerado o mais anti-português» um miúdo que vendia pacotinhos de amendoins, na estação, aos viajantes, disse-lhes qualquer coisa que não percebeu, quando se abeirou da janela «com um noviço de cada lado e eu perguntei ao do lado ‘ó joão, o que é que o miúdo disse? E ele respondeu, ‘disse assim: ó branco, vai-te embora para a tua terra’. Foi a única falta de respeito que senti. Mas como veio de um miúdo…». Até porque o padre Manuel garante que «o povo moçambicano é muito respeitador e muito pacífico. Até admira que tenham feito uma guerra. Mas foi porque eram armados pelo estrangeiro. Qualquer povo do mundo, por mais pacífico que seja, por natureza, se lhe põem armas na mão e um pouco de ódio no coração, temos guerra».
Enquanto houver força
Talvez devido a esse respeito de que fala, Manuel Ferreira quer continuar em Moçambique, «enquanto tiver forças para trabalhar e não der trabalho». Isto porque reconhece não haver lá, ainda, estruturas de apoio aos idosos e é usual então o regresso a Portugal. Mas Manuel Ferreira tem como exemplo o padre Albano. Também ele natural da Freixianda, tem 93 anos e faz, este ano, 63 de África». Veio para Portugal já velhinho mas chegou cá e sentiu que não estava a fazer nada e decidiu voltar para Moçambique para não morrer de tédio. E voltou. Está velhinho mas continua a trabalhar. E como lá somos pouco, qualquer trabalho nos dá a sensação de sermos úteis».
Religiões, seitas e ritos africanos
Quanto à convivência com outras religiões, o padre Manuel recorda haver dois tipos de religiões: as cristãs com as mais diversas denominações e as não cristãs. Para além destas há uma grande variedade de seitas e de ritos africanos. É a propósito destes últimos que conta uma história divertida. «Contou-me há dias um responsável da Caritas em Tete, que o administrador o convidou a percorrer a região para conhecer as religiões que por lá havia. Foram tomando contacto com estas, até que chegaram a uma que teve que ser proibida. Era a religião de Adão e Eva, onde os fiéis realizam ritos nocturnos, todos nus, em grandes orgias. Só proibiram essa».
Quanto ao diálogo inter religioso, Manuel Ferreira fala da naturalidade com que ele se faz em África. «Nas famílias há pessoas de diferentes religiões»», embora reconheça que este diálogo é mais difícil por exemplo, com os muçulmanos, visto tratar-se de uma religião, tal como a católica, transcendental e «uma pessoa que está numa religião transcendental, muito dificilmente muda». Considera os muçulmanos «muito bem organizados mas muito mais intransigentes». Porém, «em Moçambique, não há fundamentalismos». Os muçulmanos «querem levar uma vida tranquila e não têm propensão para guerras. Tenho muitos amigos e tive muitos alunos muçulmanos. Em Moçambique o único perigo advém do seu poder económico. Há lá muçulmanos muito ricos e se chegam ao poder podem tentar impor leis injustas para o povo».
A sida, o «jeito»
e a falta dele
Um dos grandes problemas, actualmente, em África, é a sida. Face a isso quisemos saber como age um padre católico. Segue as directrizes de Roma ou adapta-se à realidade? Quanto a isso, o padre Manuel é claro. «A igreja prega o ideal e por isso não pode defender o preservativo». Mais, no caso concreto de Moçambique, fazê-lo seria incitar ao desregramento». Recorda que aquele é um povo que vive de modo «muito natura» e «sem os redutores que nós temos». Por isso conta o que se passou com a forte campanha desenvolvida pelo Estado para o uso do preservativo. A única marca existente ali é o «Jeito» e o nome acabou por se generalizar o que torna muito complicado, diz divertido, utilizar esta palavra». Não podemos usá-la nas homílias. É que a campanha «está por todo o lado: "amor com jeito", "faça com jeito"… Ora, com a campanha, diz, o que aconteceu foi que «toda a gente começou a usar o "jeito" e espalharam "jeito" por toda a parte. Ou seja,, toda a gente começou a ter relações, mesmo quando elas não estavam previstas. Resultado, em vez de diminuir, a sida aumentou assustadoramente». É que «as pessoas criam hábitos e usam "jeito" mas há um dia que não há e vão lá mesmo sem "jeito".
«A igreja
não está no mundo para facilitar a vida»
Por isso o padre Manuel diz que não pode recomendar o "jeito", até porque a sociedade civil se encarrega disso. Por outro lado, fazê-lo seria estar a «facilitar a vida e a igreja não está no mundo para facilitar a vida. Está para dificultar. Porque a cruz, ninguém no-la tira». Por isso, defende que «o evangelho não é um código de regras. É um livro que nos convida ao heroísmo, ao impossível. Quando diz que basta que um homem olhe para uma mulher com desejo e mesmo que não vá para a cama com ela, já está a pecar e eu digo isso nas minhas aulas, é a gargalhada geral. Mas eu, se não me vigiar, também não consigo». Por isso, «o evangelho é um constante convite ao heroísmo».

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