22 dezembro 2006

Vozes inquietas em «Anos Inquietos»


«Anos Inquietos – vozes do movimento estudantil em Coimbra (1961 – 1974)», é o tema do livro lançado no sábado à tarde, na Som da Tinta.
Trata-se de um conjunto de sete entrevistas a outros tantos activistas do movimento estudantil de Coimbra, nos quentes anos 60 e depois até à queda da ditadura, em 74.
Testemunhos na primeira pessoa, de quem viveu e mantém a memória desses tempos que surgem como importantes contributos para a história de uma época que só agora começa a poder fazer-se com o devido distanciamento.
A apresentação, na Som da Tinta, esteve a cargo da entrevistadora, Manuela Cruzeiro e de dois dos entrevistados, Carlos Baptista e Fernando Martinho e, apesar de ter sido uma das sessões menos concorridas na livraria, a verdade é que foi das mais longas. Por um lado, os dotes de oratória da Manuela Cruzeiro prendiam os ouvintes, já de si presos a um tema que seduz e envolve não só quem viveu aquela época mas todos os que passaram pela velha academia ou, simplesmente, sabem o papel que desempenhou no período final do Estado Novo. Daí a que, rapidamente, as conversas que se estabeleceram no livro, dele tenham emergido para encherem a sala com mais testemunhos ou mais vontade de saber sobre um tempo que é preciso não esquecer ou, como diria Manuela Cruzeiro e Sérgio Ribeiro, é preciso que não caia na «desmemoria».
Diferente de esquecimento, algo que nos é inerente a todos, factor físico ou mental, mas sempre natural, a desmemoria é como que um esquecimento provocado. «Assiste-se a isso com frequência, a partir do princípio perverso da lembrança e da comemoração. Fingimos que não esquecemos nada, porque compensamos o esquecimento do passado com a produção de regressos ao passado». Nestas palavras, Manuela Cruzeiro mostra que, no fundo procura-se a recordação apenas do que interessa, não a nós, cidadão individuais, mas a quem ocupa cargos que lhe permitem dispor dos factos através da celebração do que convém à situação. Exemplos disso são as celebrações dos descobrimentos onde, de forma perfeitamente narcisista se evocam os grandes feitos, esquecendo-se os grandes males que foram provocados nos povos colonizados.
E a colonização é também um dos temas focados durante estas entrevistas, já que dois dos entrevistados, precisamente os que estiveram na Som da Tinta, no sábado, falam das suas experiências em África, onde nasceram e viveram parte das suas vidas. Um, filho de emigrantes de Trás-os-Montes e da Beira que foram procurar uma vida melhor em Angola, e outro, filho de militar colocado em Moçambique.
Experiências de vida muito diferentes que são contados de forma intimista, como aliás todos os outros testemunhos da obra, resultado evidente das relações de amizade que se sentem existir com a entrevistadora e, nalguns casos, sendo claro que a abertura que se sente, só é possível graças a essa mesma amizade. Assim, o diálogo torna-se fácil e envolvente, envolvendo-nos também a nós, leitores, nesse mesmo clima, algo intimista, de quem conta uma experiência pessoal muito sua, mas que afinal é de muitos e, sobretudo, é para muitos. Através da leitura destas entrevistas ficamos a entender melhor factos que começam a ser romanceados ou, pior, desmemorizados.
Daí a importância destes testemunhos que a verdade histórica exigiría fossem continuados com outros e que, segundo Manuela Cruzeiro, até estavam previstos, mas o orçamento do Estado está mais virado para as tecnologias e ao que parece não dispõe de meios para que o trabalho possa ser continuado. Enquanto isso, vai sendo possível «impingirem-nos» figuras epocais completamente descontextualizadas e versões dos acontecimentos muito ao jeito das conveniências.
A única forma de fazer frente a esta forma distorcida de narrar acontecimentos, é ler, como que ouvindo contar, a quem viveu e ainda não esqueceu.
Para além de tomar conhecimento do que foi, de facto, em Coimbra, a tomada da Bastilha, a inauguração das Matemáticas, as greves e os seus piquetes, os discursos e a vida militar compulsiva, fica a conhecer-se uma Coimbra retrógrada e tão provinciana como o resto do país, onde a mulher ocupa ainda um lugar secundaríssimo, onde reinam os tabus e os dogmas mas também o sonho de muitos jovens que souberam acreditar e lutaram pelo sonho que nos trouxe a liberdade embora, para muitos, senão para todos os que lutaram, ele continue ainda hoje, um objectivo a perseguir porque não foi concluído.
Por isso, e segundo a historiadora desta época, fala-se deles como sendo «os vencidos». Porém, se é pelo sonho que continuamos, então vencidos serão aqueles que encontram na tal desmemoria, razões para se sentirem vencedores. Esses sim, foram vencidos pelo sistema, envolvidos pelo engano do poder. Resta saber, no final, quem fará história. Decidir isso, cabe-nos um pouco a todos nós. Só precisamos saber se preferimos ser ludibriados, desmemoriados, ou esclarecidos e donos das nossas próprias memórias.
Por isso, não resisto a transcrever as palavras finais do prefácio de Rui Bebiano:
«Acredito que aquilo que de melhor pode suceder a este livro é que ele contribua para revelar, principalmente às gerações que se seguiram a esta, assim como aquelas que forem chegando, a complexidade, a riqueza humana e o persistente frescor de um tempo de mudança que tem sido abordado e avaliado, vezes demais, de uma forma demasiado simplista, por vezes anedótica e redutora, ou então algo mitificada. Para dar a entender que aqueles que aqui falam não foram, e não são, santos ou heróis, mas apenas pessoas com um convicto sentido de dimensão solidária, activa e necessária, da experiência da cidadania e da própria vida».
Aurélia Madeira

As vozes
Os entrevistados por Manuela Cruzeiro são:
Eliana Gersão; Carlos Baptista; Fernando Martinho; José Luís Pio de Abreu; Fátima Saraiva; José Cavalheiro e Luís Carlos Januário.

Sem comentários: