26 abril 2007

Fazer o bem sem olhar a quem: Visita guiada ao «inferno»


Mil sandes de carne, muitos pacotes de leite e de sumos e muitas laranjas, foram a bagagem de um grupo de escuteiros do norte do concelho que, no sábado à tarde, rumaram a Lisboa com uma missão bem diferente das actividades que costumam desenvolver e que, com certeza, tão cedo não esquecerão. Juntamente com as equipas da Comunidade Vida e Paz, os nossos jovens do Agrupamento 1263, da Ribeira do Fárrio, distribuíram, durante cerca de seis horas, na noite de sábado para domingo, alimentos aos sem-abrigo da capital.
O Notícias de Ourém, convidado, participou nesta acção que mostrou aos jovens a cidade que se esconde por trás dos cartazes turísticos.
A ideia surgiu dos próprios jovens que manifestaram vontade de realizar esta actividade. Para tal contactaram a comunidade Vida e Paz, através do professor Josué Quartau que já anteriormente havia organizado participações idênticas com turmas de alunos seus.
Pediram o pão e a carne em talhos e padarias. Nas igrejas houve colectas de leite e de dinheiro que permitiram comprar o que faltava e familiares ofereceram as laranjas.
Adquiridos os bens havia que cozinhar os 80 quilos de carne, o que foi feito no salão da Junta de Freguesia do Fárrio. Às 17 horas de sábado estava marcado o encontro junto à escola secundária de Ourém, de onde partiram duas carrinhas carregadas com os jovens e com os mantimentos, uma emprestada pela Quercus e outra pela OuremArte.
Já em Lisboa fomos recebidos por elementos da Comunidade e, na sede de Alvalade, distribuíram-se os alimentos por três carrinhas. Cada uma iria fazer uma volta pré-estabelecida, a mesma que fazem todos os dias mas, desta vez, duas das equipas da comunidade levavam consigo a companhia dos jovens oureenses.
Jovens que, logo após a primeira paragem, questionavam as suas próprias condutas ao exigirem roupas de marca e ao recusarem certos alimentos. É que perceberam o quão importante pode ser para alguns seres humanos, apenas, uma sandes.
Não havia dúvida, pelos rostos sem tempo que nos surgiam em cada paragem, que para muitos aquela era a única refeição do dia.
A primeira paragem trouxe junto de nós, sobretudo, toxicodependentes. Alguns, olhos vagueantes, perdidos num drama só seu, que a droga deixa esquecer. Um ou outro com ar mais andrajoso, mas, a maioria, jovens normais, tão iguais àqueles que ali lhes estendiam a mão! A maioria recolhia o seu quinhão depois de dar as boas noites e continuava no seu caminho para lado nenhum, após um obrigado quase mecânico, muitas vezes de olhos postos no chão. Ficámos todos espantados pela forma educada como se nos dirigiam. Com alguns chegávamos à conversa, embora fosse evidente algum constrangimento face ao inesperado de haver muito mais gente do que a costumada nesta ronda amiga. Nas poucas conversas, titubeantes, adivinhávamos, mais que ouvíamos os dramas de vida, sempre tão diferentes e tão iguais, que cada um daqueles rostos escondia.
«Guarda para a menina»
E não foram os mais andrajosos, os mais jovens ou mais velhos que mais nos impressionaram.
A determinada altura chega-se uma jovem que diríamos na casa dos 30 anos, mas que também poderia ser dos vinte. A droga troca as voltas ao tempo e perde-se a idade. Recebeu a sua parte e partiu para voltar logo a seguir com o companheiro. Havia sido dia de festa na comunidade e, por isso, a acrescer aos bens levados de Ourém, cabia ainda um chocolate em cada ração. Quando o companheiro ensaiou um gesto que poderia ser de recusa do chocolate, ouvimos a rapariga dizer: «guarda, é para a menina. Também guardei o meu». E lá seguiram. Mas voltaram. Junto a si uma pequenita que teria uns 7, 8 anos de idade. Bonita, limpa…, logo atrás uma outra, envergonhada, como que forçada a deslocar-se ali, talvez porque, mais velha, com uns 12, 13 anos, já tinha outro entendimento da realidade em que vivia. Metemos conversa com elas. A mãe perguntou se elas também podiam receber a dádiva. Claro que sim. A mais pequenita vinha a comer um dos chocolates que déramos a um dos progenitores. Ali ficamos, olhando aquelas meninas e, naquele momento, não foi o presente que nos atormentou. Foi a projecção do futuro. Esse seria o motivo dos comentários dentro da carrinha, depois, quando nos deslocávamos para um outro ponto da cidade escondida. Uma inquietação que permanece… e que dói.
O caminho foi prosseguindo. Nem sempre eram de toxicodependentes, as mãos que se estendiam. Tantas, ou mais, eram de vidas arrastadas pelo álcool. Aqui e ali, um mais esfuziante, contava-nos a causa da perdição. Tantas e tantas razões sem razão. Teias emaranhadas, sempre dramas profundos que tiraram a força para continuar a luta do dia-a-dia.
E os nossos jovens iam percebendo a dureza destas vidas sem rumo e, quase sempre sem esperança.
Depois havia outro tipo de mãos estendidas. As dos imigrantes, sobretudo brasileiros e de leste. Neste caso não pode considerar-se, propriamente, a condição de sem abrigo. Embora haja casos de ilegais escondidos na noite da cidade escondida, a verdade é que a maioria dos que connosco se depararam contavam-nos que viviam em comunidade, alguns com trabalho, mas aproveitavam aquela refeição para poupar um pouco mais do pouco que ganham para poderem enviar às famílias que, lá longe, vivem a espera. Também aqui o álcool faz das suas. Mas é sobretudo nos emigrantes do leste que encontramos os mais predispostos à conversa. Evidencia-se a solidão dos dias vividos na memória das famílias distantes, dos dias antes da partida em busca do oásis que bem depressa se mostrou ser um deserto árido onde por vezes faltam as forças para continuar. Pedem roupas, agasalhos.

«Não há um cobertor?»
Fora das vielas negras e escondidas, nas avenidas com lojas de marca profusamente iluminadas, em vãos das montras, estendidas em cartões, encontramos muitas outras vidas errantes que, em busca do nada, dormentes, ainda encontram forças para um agradecimento às mãos que ali deixam um pequeno conforto na noite. Continua a espantar-nos a educação, a solicitude com que nos recebem, sem revoltas evidentes, numa aceitação tão calma como aquela com que aceitam o seu estado, a vida que perderam um dia, já nem sabem como.
Alguns erguem o rosto enrugado e sem idade e perguntam se «não há um cobertor». Dizem-nos os nossos acompanhantes da comunidade que os cobertores são bens preciosos neste sub-mundo. Roubam-nos uns aos outros e muitos apenas se cobrem com um papelão. Uma caixa desmanchada de um qualquer electrodoméstico, (talvez um aquecedor) cuja embalagem ajuda ali enganar o frio. Outros há que, com essas caixas, constroem verdadeiros bunkers que lhes servem de lar.
Aqui são os velhinhos, aqueles que trabalharam toda uma vida e agora nada têm, quem mais choca. Os novos também, mas nesses conseguimos ainda acreditar que se quiserem, um dia, se agarrarem com força alguma mão daquelas que todas as noites se estendem, poderão reencontrar-se. Mas os velhinhos…
Encontramos um, alcoolizado, que só com muita dificuldade conseguimos tirar da estrada. Queria morrer, repetia. Estava farto da vida. E contou-nos aquela que um dia teve. Brasileiro, fora escrivão judicial em Angola. Agora anda perdido nas ruas de Lisboa a sonhar com o filho «bonitão» lá no Rio. Com a mulher que o deixou. Diz receber uma pensão social de 150 euros, mas «paga renda de 160 euros de um quarto, no Bairro Alto». Por isso, na maioria dos dias não come. Agradece muito o pão que recebe e é para nós, não para si, que pede a ajuda de Deus. Porque acredita que Deus existe mas acredita também que se esqueceu dele. Por isso, tem a certeza, que «a vocês Deus vai ajudar». Um dos voluntários da Comunidade sente que tem que ajudar aquele homem, completamente perdido, mas que ainda não perdeu a fé, sentindo nisso uma réstia de esperança. Dá-lhe um cartão e combina um encontro para o dia seguinte com uma carrinha que o irá buscar para lhe dar a tal ajuda porque tanto pede.
Noutro local da cidade, outro homem, outra vida a perder-se mas que parece abrir uma nesga de esperança. Fala muito. Conta-nos toda a sua vida. A desavinda com a família, os três filhos, uma menina e dois gémeos à guarda da irmã e dos ex-sogros. A necessidade de se libertar do caminho que leva para poder reencontrar os filhos. Não pede ajuda por palavras. Mas nos silêncios, entre cada frase, há uma súplica gritada. Jura que não se droga. É o álcool que o consome. Mais uma vez, depois de longo tempo de conversa, se combina um encontro com a carrinha que poderá vir no outro dia recolhê-lo para o ajudar.
E durante seis longas horas percorremos ruas e vielas da velha Lisboa onde, na noite, se movem sombras de homens e mulheres que cansados tombam num canto escuro, escondidos da própria vida, quais náufragos, sem rumo ao sabor das marés. Nuns o cheiro ao álcool quase causa náuseas, outros apercebemo-los fugidios, virando-nos as costas para que não vejamos a seringa que lhes lacera os braços. Depois voltam-se, devagar, acalmada a ânsia da dependência feroz. O pão para acalmar o estômago ocupa um secundaríssimo plano. Mas bebem muito leite. Há como que uma consciência ainda que lhes vai dizendo que é importante que o façam. Também há os que o recusam. Não podem. O estômago já não aguenta depois de tanto tempo a ser alimentado apenas por álcool.
Ao receberem a refeição, alguns ensaiam um sorriso negro, de dentes estragados, reflexos das suas próprias vidas.
Não é pena o principal sentimento a invadir-nos. É qualquer coisa mais funda, que atormenta.
«Ninguém está livre», recordam-nos os nossos companheiros de viagem. «Às vezes basta um pequeno clic para que toda uma vida se transforme e, sem saber como, cai-se neste mundo…».
Prosseguimos a viagem. Encontramos outros voluntários, de outras associações ou estudantes de psicologia que procuram mostrar caminhos ou, pelo menos, fazer-lhes acreditar que eles existem, que estão ali ao lado, para os seguir só é preciso ter a imensa força de querer. Mas querer é algo que só consegue quem ainda tem e por isso acredita. Esta gente já há muito que deixou de querer seja o que for. Basta-lhes a dose diária de esquecimento. Perderam tudo e perderam-se a si mesmos.
Luzes nas trevas
Os voluntários da Comunidade Vida e Paz, para além de lhes reconfortarem os estômagos vazios, procuram levar-lhes um pouco de conforto para as almas. Primeiro com palavras, sem recriminações, compreendendo os seus dramas, as suas dores profundas. Depois, lentamente ensaiam a ajuda maior. Às vezes conseguem. E quando isso acontece, mesmo que seja raro, uma vela mais vem iluminar as suas vidas e dar-lhes força para continuarem. Homens e mulheres que oferecem o que têm, o seu tempo e a sua vontade de se sentirem úteis mas também, alguns deles, homens e mulheres que um dia viveram os mesmos dramas, que foram recuperados e hoje estão ao serviço dos que mais precisam. Não se limitam, pois, a levar o pão para a boca. Levam sobretudo a sua solidariedade, a sua vontade muito forte de ajudar, de salvar quem, na maioria das vezes se recusa a ser salvo, mas também as suas experiências pessoais, os seus dramas, quantas vezes «moeda de troca» nas conversas, que permitem ganhar a confiança de quem há muito a perdeu.

Sem comentários: