19 outubro 2006

Ainda as finanças locais

Na anterior edição o NO tentou dar uma perspectiva da discussão, acalorada, que se está a fazer em torno da nova lei das finanças locais. Depois de termos ouvido o redactor da lei na Comissão da especialidade em sede de Assembleia da República e de transcrevermos as posições da Câmara acrescidas da declaração de voto dos vereadores do PS, chegam-nos as dos deputados social-democratas eleitos pelo distrito de Santarém. Miguel Relvas apresentou uma declaração e Mário Albuquerque um pedido de esclarecimentos, na sessão do plenário do passado dia 11, aquando do debate deste tema.
A intervenção de Miguel Relvas
Relvas começa por considerar que a nova lei é «o maior ataque de que há memória ao poder autárquico livre e democrático».
Para explicar esta posição, o deputado faz um historial do que tem sido o poder autárquico desde o 25 de Abril, época em que, como afirma, «quase tudo estava por fazer». Aponta a capacidade que as autarquias tiveram de responder às necessidades existentes em termos de infra-estruturas «tão básicas e essenciais como a distribuição de água ao domicílio, o saneamento básico, a energia eléctrica ou as vias de comunicação».
Por isso, para o deputado «uma parte importante do nosso progresso no país e do nosso desenvolvimento como nação, deve-se ao trabalho notável das autarquias locais e dos autarcas de todos os partidos».
De seguida, Miguel Relvas apresenta um conjunto de números que pretendem provar o «grau de eficiência e de eficácia na utilização dos recursos públicos que não tem paralelo nos restantes níveis da nossa administração pública», concluindo «o poder local gere melhor que a generalidade da administração pública». Embora reconhecendo que «pode haver um outro exemplo menos positivo na gestão autárquica», o deputado afirma que «na administração central, ao contrário, os exemplos de desperdício são a regra e não a excepção».
Relvas continua acusando o Governo de fazer um «discurso contra as autarquias e os autarcas, quando podia e devia começar por meter ordem onde mais se impunha – no despesismo, no desperdício e nos elevados níveis de endividamento da administração central do estado». E recorda que «foi o próprio primeiro-ministro quem, na sua intervenção no congresso da associação nacional de municípios, em 9 de Dezembro de 2005, reconheceu que o trabalho das autarquias constitui "um contributo positivo para a modernização do país e para a nossa democracia".
Diz o deputado social-democrata que «a proposta de lei de finanças locais é tudo o contrário do que o primeiro-ministro prometeu», porque «em vez de reforçar a autonomia do poder local, limita-a; em vez de reforçar a descentralização pratica o centralismo; em vez de dar liberdade para exigir responsabilidade, consagra intromissões abusivas e inaceitáveis do poder central no poder local autónomo, legítimo e democrático».
Vai mais longe a acrescenta que «no plano da atitude politica a incoerência do governo não é menor. Onde antes propunha harmonia e entendimento, oferece agora arrogância, provocação e afronta». Mas para o deputado, o Governo não está a afrontar os autarcas mas sim as populações a quem também penaliza.
Isto porque «os autarcas continuarão a fazer o seu melhor, com competência e a dedicação que se lhes conhece. As populações é que passarão a sentir menos obra, menos progresso e menos desenvolvimento».
Considera que «o pecado capital desta proposta de lei é que ela é uma oportunidade perdida. Não é uma reforma. É um remendo». E apresenta alguns exemplos para concretizar aquilo que seriam as alternativas social-democratas.
«Primeiro exemplo: esta era a oportunidade de fazer com que as autarquias locais – em particular as maiores - dependessem menos da construção e do financiamento imobiliário. O país e as autarquias só tinham a ganhar com isso. Em boa verdade o que esta lei faz é o contrário – os municípios maiores passam, na prática, a depender ainda mais dos financiamentos, das contribuições e das taxas ligadas à construção e ao mobiliário, enquanto as câmaras mais pequenas, que nem essa dependência têm, passarão por situações de preocupante asfixia.
Segundo exemplo: esta era a oportunidade de criar as condições que estimulassem a existência de um rating dos municípios. Uma orientação dessa natureza só favoreceria a competitividade autárquica, com todas as vantagens para o país.
O governo não faz nada disto. Em vez de favorecer a competitividade, pratica a confrontação. Estado contra estado, poder central contra poder local. Tudo ao contrário do que podia e devia ser.
Terceiro exemplo: esta era a oportunidade de promover uma substituição parcial das transferências do estado para os municípios – subordinada, todavia, à manutenção da carga fiscal e a um impacto nulo no saldo das contas do estado –, preferencialmente sob a forma de derrama a lançar sobre o IRS e o IVA e partilhando, por outro lado, os municípios com a administração central os impostos sobre o património.
Nada disto faz o governo. Porque não quer mudar de filosofia e de modelo. Quer asfixiar, não quer reformar.
Ao contrário, prevê uma folclórica intervenção dos municípios na modelação até 3% do IRS gerado na respectiva autarquia, sabendo muito bem que, além de folclórica, esta medida é inconstitucional. Como qualquer português sabe, o IRS e o IRC são impostos de carácter nacional. Sobre eles só pode dispor a assembleia da república e não qualquer autarquia, a seu belo prazer.
Ou seja, o governo faz o que não pode legalmente fazer, mas não faz o que podia e devia fazer.
Quarto exemplo: esta era a oportunidade de terminar com o absurdo de os prédios do estado central não pagarem impostos. Os cidadãos pagam, quando têm prédios, o imposto municipal de imóveis. O estado, esse, não paga, embora tenha prédios por todo o lado.
Dois pesos e duas medidas que ninguém compreende e que não faz qualquer sentido, a não ser na mente centralista e jacobina do partido socialista.
Quinto exemplo: esta era a oportunidade de consagrar o princípio de que a execução orçamental dos municípios estivesse periodicamente divulgada na internet, para que os munícipes soubessem como vai a vida financeira do seu concelho, a pudessem acompanhar e fiscalizar.
Fazer isto seria inovar. Ora, o propósito do governo não é inovar é asfixiar. A vontade do governo não é modernizar, é interferir. O objectivo do governo não é ir ao fundo dos problemas. O que o governo quer é controlar, como se de um serviço do estado se tratasse, num poder local que é autónomo, que é democrático, que é eleito e que diz muito ao dia a dia de cada português.
Sexto e último exemplo: esta era a oportunidade de regulamentar as parcerias público-privadas no plano autárquico. Um instrumento de modernidade e de futuro. Um instrumento cada vez mais importante e útil.
Mas isto, o governo não faz. Porque isto seria reformar e o governo faz que reforma mas não reforma. Pode haver, e bem, parcerias público-privadas no plano nacional. Mas o governo não as quer regulamentar no plano local. É esta atitude permanente de dois pesos e duas medidas que faz da acção do governo, agora no que respeita ao poder local, uma acção injusta, arbitrária e sem qualquer sentido».
Apresentadas estas que considera serem as «principais divergências de fundo» Relvas afirma que, para além de ser a «lei da oportunidade perdida», ela é também «a lei que consegue bater o recorde de violações à constituição». Por isso, afirma, «ou a lei é mudada na especialidade ou então não deixaremos de suscitar junto do tribunal constitucional a apreciação da sua constitucionalidade».


Albuquerque pede esclarecimento
Nesta mesma sessão, o deputado oureense Mário Albuquerque, pediu um esclarecimento sobre este mesmo tema. Considerando, também ele, esta lei como «uma ofensiva, sem precedentes, à autonomia do Poder Local, retirando-lhe dinheiro e competências e impondo-lhe regras e tutelas que, de todo, colidem com a sua legitimidade e mais profunda matriz democrática». Albuquerque afirma ter reflectido também como ex-autarca ao questionar o deputado da maioria socialista, Pita Ameixa, se este «não acha que estamos perante uma Proposta que, a ser aprovada, representa um lamentável retrocesso no já longo e valioso percurso do Poder Local, sobretudo pela sua feição manifestamente centralista?
Não acha que estão feridos os princípios da autonomia, da coesão territorial, da subsidariedade e do associativismo inter-municipal, como conquistas de inestimável dimensão, bem como os próprios textos constitucionais em matéria de impostos?
Finalmente, como o enunciou o Governo, na respectiva Exposição de Motivos, acha, muito sinceramente, que existam razões substantivas, a partir de agora, para que os Municípios comecem a estar menos dependentes das receitas oriundas da construção?».

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